reparos

Sentado no chão, contemplava a tinta laranja da carcaça da máquina. O bloco quase cúbico, oitenta centímetros em cada lado, reluzia nos cantos polidos sempre que um transportador passava pelo corredor.

Observava um parafuso ligeiramente espanado. Nenhum outro possuía qualquer defeito, ou tinha a fenda desalinhada. A harmonia dos detalhes sobrepujava o perfeito funcionamento da máquina, o que deveria ser – mas não era – o objetivo principal de um técnico.

Deixando a estopa suja de lado, levantou-se, ajeitou os óculos no rosto imberbe e tomou um formulário de requisição. Preencheu-o cuidadosamente, postou-o na caixa de pedidos e voltou a se sentar no chão com as pernas cruzadas.

Quase duas horas se passaram para que um transportador trouxesse a solicitação. Veio em uma caixinha plástica, selada por um adesivo com um código de barras. Rasgou-o, abriu a caixa, tirou o parafuso, colocou-o entre os dentes, e se dirigiu à máquina.

Há muito descobrira a intensidade exata do aperto. Nem muito, para não dificultar a substituição, nem pouco, para que a vibração não o soltasse. Em perfeita calibração, a máquina respondia com um ronco quase imperceptível, como uma voz aveludada que sussurrava segredos ao ouvido.

Depois da substituição do parafuso, reuniu as ferramentas e se afastou novamente. Dois passos eram suficientes para atingir a faixa amarela, pintada no chão, que delimitava seu espaço de trabalho. Em ambos os lados, a cada dois metros, centenas de outros técnicos, em uniformes azuis como o dele, garantiam o perfeito funcionamento de máquinas com funções obscuras.

A tinta alaranjada não parecia ser de boa qualidade. Estava descascando em alguns cantos, arranhada em outros. Solicitou, com um novo formulário, a substituição de toda a carcaça. Sentou-se novamente para esperar a chegada das peças.

O turno estava quase no fim quando a carcaça sobressalente, de aço escovado, chegou em sua área. Embaladas em plástico bolha, as peças foram alocadas ao lado da máquina. Ele olhou o relógio, caminhou para o fundo de sua área de trabalho e pegou o colchonete. Estendeu-o mais perto do corredor, deitou-se e dormiu. A troca ficaria para o dia seguinte.

*

Ainda estava escuro quando acordou. Como os demais, recolheu o colchonete, dirigiu-se ao fundo da área e entrou no pequeno banheiro. Ao sair, o café da manhã já estava depositado sobre a mesinha de formulários. Dois ovos, uma salsicha, pão, manteiga, chocolate quente, suco de laranja, um doce de abóbora. Comeu tudo com calma.

As luzes se acenderam violentamente. Levou a mão aos olhos até se acostumar com clarão das lâmpadas, fortes como um sol dentro do galpão.

Descalço, avançou até a faixa amarela do corredor. Sentiu com os pés que ela era ligeiramente mais quente do que o chão, espessa e muito lisa. Olhou para os lados, viu os colegas se preparando para o dia. Sentados, liam jornais, se exercitavam, jogavam xadrez na fronteira de seus espaços, cantavam.

O corredor parecia não ter fim, de um lado e de outro, apesar de já ter trabalhado em diversas áreas. A ala sul, a sua, parecia ser menos iluminada, mas os espaços eram mais amplos, com máquinas maiores. Na ala norte, ao que parecia, ficavam os novatos, concentrados ao extremo, faladores. Lá também havia mais água à disposição, em bebedouros, apesar de os banheiros serem menores. Era mais difícil tomar banho.

A sirene tocou, as luzes vermelhas dos cantos das áreas começaram a piscar e todos se aproximaram da faixa amarela do corredor para as instruções iniciais. Os transportadores passavam, entregando bilhetes que indicavam com precisão a tarefa do dia. Naquele dia, sua tarefa se resumia a “Concluir a manutenção”.

Tirou os óculos, limpou-os na manga do macacão, ajeitou os cabelos, e foi até as peças da carcaça. Desembalou-as cuidadosamente, colocou-as lado a lado e passou alguns segundos em silêncio. Tomou uma das peças e levou à boca. Passou os lábios de um lado a outro, percebendo a delicada rugosidade do aço escovado, suave na direção das ranhuras. Alisou a peça com as mãos, abraçou-a, e colocou-a novamente no chão.

Começou a desmontar a máquina, retirando cada parafuso com extremo cuidado, ordenando-os para facilitar a obra do remonte. Havia números desenhados no chão, e setas coloridas ligando uns aos outros.

Ao fim do processo, um transportador depositou o almoço sobre a mesinha de formulários. Bife, arroz, legumes cozidos, farofa e suco de goiaba, acompanhado de gelatina e banana. Dois guardanapos dessa vez, e um novo bloco de requisições.

Olhou o relógio, dirigiu-se ao fundo da área, lavou as mãos e voltou para comer. Mastigava lentamente, observando o vai e vem frenético dos transportadores, robôs humanoides sem fala dotados de rodas nas duas pernas.

Há semanas não falava com ninguém. Ninguém o abordava, ninguém o convidava para um jogo. Seus colegas ao lado trabalhavam quase imóveis, esquálidos, malcheirosos. Os técnicos do outro lado do corredor agiam freneticamente, apostando corrida contra o relógio ou contra as ordens que vinham com mais frequência. Novatos, selecionados em testes psicológicos criados por computadores. Não poderiam conversar muito.

Ao fim do almoço, voltou para o trabalho. Do início da montagem até o fim, gastou três horas quase exatas, em um esforço meticuloso e preciso. Ligou a máquina, ouviu seu ronco suave, correu a lista de checagem e deu por finalizado seu trabalho. Dirigiu-se ao corredor e levantou a mão.

Assim ficou por alguns minutos, até ser notado por algum transportador, que trouxe dois ajudantes. Sem muita cerimônia, levaram a máquina embora.

Pela primeira vez no ano, terminara seu trabalho mais cedo. Um vazio no centro de sua área confirmava sua eficiência. O espaço agora era todo seu, por algumas horas, sem máquinas, sem obrigações.

Calmamente, dirigiu-se ao fundo, pegou a vassoura encostada na parede e pôs-se a limpar o local. Depois de varrido, passou um pano úmido, esperou secar, encerou, e por fim deu brilho. A área estava completamente vazia e perfeitamente limpa.

Tomou banho, trocou de uniforme, estendeu seu colchonete bem no centro da área, onde ficava a máquina. Deitou-se e dormiu, aguardando uma nova no dia seguinte.

*

Assim que acordou, ainda de madrugada, para repetir os costumeiros rituais, percebeu que algum transportador retirara o banco e a mesa com os formulários. Apenas os dele. Todos os demais colegas, ainda dormindo, mantinham suas áreas exatamente como no dia anterior.

De pé, olhando para os lados com olhos atentos, roçava a mão na manga do macacão, passava os dedos na barba que crescia e andava de um lado para outro em sua área. Subitamente, deu alguns passos até a faixa amarela, levantou a mão e esperou.

Dessa vez ninguém o atendeu. Não adiantou esperar quase uma hora. Projetava seu corpo para frente, pisava fora da faixa. Corria para o centro do corredor, mas evitando ser derrubado pelo trânsito insano de transportadores, que o ignoravam friamente.

Não serviram seu café da manhã. Não trouxeram novas ordens. Não avisaram nada. Nada restava a fazer a não ser esperar.

Deitado em seu colchonete, olhando para as lâmpadas no alto, gesticulava no espaço, como se interagisse com alguém bem à sua frente. Conversava consigo, às vezes sorria, chorava.

A hora do almoço chegou, e nada. Havia guardado no banheiro alguns doces de sobremesas anteriores, e foram esses o seu almoço do dia. Algo acontecia, ele não sabia, e não tinha como saber. Restava esperar, e esperar, e esperar.

Na hora do jantar, apenas um copo de vitamina de banana e algumas pílulas do que parecia ser remédio para dor de cabeça. Tomou tudo, ávido, deitando-se novamente logo em seguida. Começou com um sono agitado, mas depois relaxou, dormindo profundamente.

*

No dia seguinte, dois transportadores vieram levar o corpo que jazia no centro da área 375.823-S. Em seu lugar, depositaram uma máquina, e trouxeram um novo técnico da ala norte.

O corpo recolhido foi limpo e processado. Sua carne transformou-se em algumas dezenas de bifes. Seu ossos, triturados e convertidos em tinta e gelatina. Sua pele, recortada em finas camadas, foi encadernada como papel, impressa com tabelas de requisições.

Naquele dia, os computadores selecionaram mais algumas dezenas de jovens candidatos. Alegres, comemoravam o anúncio, feito no dia anterior, de que em breve a fábrica não mais daria manutenção em velhas máquinas. Ela produziria apenas transportadores.

24/04/2014