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​O gênio de Leibniz

Contemporâneo de Newton, com quem se correspondeu, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 – 1716) foi uma dessas personalidades incontornáveis da história das ciências e da filosofia. Polímata de grande amplitude e profundidade, Leibniz foi outra figura central no desenvolvimento da matemática dos séculos XVII e XVIII. Mas não só dela: a lógica, a física, a biologia, a medicina, a psicologia, a linguística e a moderna computação lhe devem grandes tributos.

Como Newton, mas de maneira independente, Leibniz também desenvolveu sua versão do cálculo, tendo criado a notação mais utilizada atualmente. Seu cálculo era igualmente baseado em infinitésimos, geradores de desconcertantes contradições, mas Leibniz encarou o problema e buscou uma fundamentação clara e objetiva, dando os primeiros passos concretos para sua inclusão legítima no panteão matemático. No entanto, foi apenas na segunda metade do século XX, com a criação da análise não-standard por Abraham Robinson (1918 – 1974), que os infinitésimos foram finalmente reabilitados e puderam ser utilizados com tranquilidade pelos matemáticos — ainda que bem poucos o façam.

Leibniz era um lógico atento e profundo. Nesse terreno, fez uma contribuição fundamental: o princípio da identidade dos indiscerníveis, que afirma que duas coisas que têm o mesmo conjunto de propriedades são, na verdade, a mesma coisa. Junto com o princípio da não-contradição e o princípio da razão suficiente, esse é considerado um dos três grandes princípios da metafísica. Metodologicamente, ao transformar uma entidade na lista de propriedades que a definem, Leibniz nos deu uma lupa para a crítica social, uma vez que todas nossas ideias de universalidade passam por escolhas de propriedades comuns a classes de indivíduos, e essas escolhas não são naturais, mas ideologicamente motivadas.

Leibniz era também um gênio mecânico. Projetou e construiu a primeira calculadora capaz de realizar todas as quatro operações aritméticas, a Staffelwalze (contadora de passos):

Replica da Staffelwalze. Fonte: Wikipedia.

Leibniz acreditava, como muitos cientistas ainda hoje, que cálculos laboriosos ocupam um tempo precioso de um pesquisador e que qualquer pessoa pode fazer a mesma coisa com o auxílio de uma máquina. A Staffelwalze, porém, tinha um projeto tão delicado e sutil de engrenagens, tão além das habilidades dos artesãos da época, que apenas duas cópias foram feitas. A Leibniz, que pretendia comercializá-la, coube apenas se conformar.

Fascinado com dispositivos mecânicos e com a automação de ações repetitivas, Leibniz pretendeu levar essas ideias para outros domínios de atividade humana. Imaginava, por exemplo, que contendas e disputas judiciais poderiam ser resolvidas se as partes conseguissem codificar suas demandas em uma espécie de linguagem a ser manipulada algebricamente, como em uma máquina, produzindo a solução do impasse.

A ideia de criar uma linguagem universal que codificasse os entes do mundo e suas relações ocupou Leibniz durante sua juventude e muito de sua vida adulta. Seus esforços nessa direção passaram tanto pela filosofia quanto pela matemática, e inspiraram a criação de línguas artificiais, como o esperanto além de ter dado partida na moderna teoria da computação, que tem seu texto fundador no artigo Explication de l’arithmétique binaire, qui se sert des seuls caractères 0 et 1, avec des remarques sur son utilité, et sur ce qu’elle donne le sens des anciennes figures Chinoises de Fohi (Explicação da aritmética binária, que se serve apenas dos caracteres 0 e 1, com observações sobre sua utilidade e sobre o sentido que dá às antigas figuras chinesas de Fuxi).

Nesse artigo, Leibniz mostra como codificar todos os números através de um sistema de numeração de base 2 que necessita apenas de dois símbolos, 0 e 1. Além disso, e porque recebeu de um amigo uma cópia do I Ching, Leibniz percebeu as ligações entre os trigramas do livro e o seu sistema, vislumbrando, assim, mais um passo na construção da sua língua universal, chamado por ele de characteristica universalis.

Vamos a um exemplo. Tome a sequência geométrica 1, 2, 4, 8, 16, 32… em que cada número é o dobro do número anterior. Leibniz percebeu que qualquer número inteiro pode ser escrito como a soma de alguns números dessa série. Por exemplo, 51 pode ser escrito como 32 + 16 + 2 + 1, começando do maior número para o menor. Observe que você não usou os números 8 e 4. Assim, se você fixar a série como 32, 16, 8, 4, 2, 1 e “marcar” com 1 aqueles números que foram utilizados e com 0 aqueles que não o foram, temos a sequência 1, 1, 0, 0, 1, 1, indicando que usei 32, usei 16, não usei 8, não usei 4, usei 2 e usei 1. Escrevendo sem as vírgulas, temos o número 110011, que lemos um, um, zero, zero, um, um.

O artigo vai além e indica como somar, subtrair, multiplicar e dividir esses números binários. O que Leibniz não imaginou é que esse sistema de numeração viria a ser utilizado 250 anos depois no desenvolvimento dos modernos computadores – do celular que você usa para ler este texto.

Discussão

Leibniz foi outro filósofo que se dedicou muito à matemática. Por que será que boa parte dos filósofos ocidentais foram também matemáticos ou, pelo menos, ensinaram matemática em algum momento de suas vidas? Pense também no seguinte:

  1. Você acha que as operações aritméticas devem ser ensinadas nas escolas apenas para que possamos operar computadores com segurança? Se uma máquina calcula melhor do que nós, por que precisamos aprender, por exemplo, a dividir dois números longos?
  2. O princípio dos indiscerníveis de Leibniz é um princípio lógico definitivo e universal? Você concorda com ele?
  3. Você acredita na possibilidade de criação de uma língua universal a ser utilizada na comunicação humana?
  4. A numeração binária de Leibniz foi utilizada pelo matemático inglês George Boole (1815 – 1864) na algebrização da lógica, algebrização que foi utilizada pelos pioneiros da computação digital. Você acha que esse é um exemplo de como o conhecimento desinteressado e a pesquisa básica sem pretensões utilitárias devem ser mantidos e custeados com dinheiro público?