bodes

No começo, houve o esperado estranhamento.

Altos, pele pigmentada de nuances de verde e marrom, lisa e resistente, pareciam-se conosco em quase tudo, exceto pelo longo pescoço e cabeça semelhante à de um bode sem pelo. Olhos pequenos, boca pequena, voz estridente.

Chegaram em quatro grandes naves, despercebidos. Pousaram sobre o Pacífico, a poucos quilômetros da Ilha de Páscoa, flutuando ao sabor de fortes ondas que lhes impediram o desembarque precoce. Após alguns dias, mar calmo, deslocaram-se lentamente para a costa.

Pouco tempo depois dos primeiros temerosos contatos, já eram mundialmente conhecidos. Tornaram-se a sensação de todos os momentos, requisitados em programas de televisão, em festas e homenagens, nos quais demonstravam suas características mais marcantes: uma timidez extrema e um silêncio quase absoluto.

Apesar da reduzida interação, rapidamente nos acostumamos a eles, ao seu jeito de andar e de se vestir, aos seus sorrisos exóticos e suas mãos longas e suaves. Pareciam, é verdade, viver em um mundo próprio, sem muita consideração para o generalizado apoio ao seu modo de vida peculiar.

Sua presença modificara definitivamente nossa maneira de pensar o universo. Eram convidados para congressos de ética universal, ciências extraplanetárias e exoarte. Eram instados se manifestar artisticamente, mas não conheciam outras formas de expressão senão uma dança e um único estilo de música, composto de ruídos vocais, grunhidos, estalos de dedos, palmas e gritos ritmados, sem quaisquer instrumentos. Na única demonstração registrada de suas habilidades artísticas, ocorrida há alguns anos em uma televisão alemã, um deles apresentou um passo em que revirava a cabeça de maneira bizarra, enquanto o apresentador surpreso gritava “Mein Gott! Mein Gott!”. Esse episódio valeu para denominar sua música e sua dança de “mangote”.

Sua biologia era totalmente diferente da nossa. Consumiam, preferencialmente, alimentos ricos em enxofre, como alho, amêndoas e castanhas. Sofriam com o excesso de nitrogênio do ar e apreciavam ambientes ricos em gás carbônico. Suas crianças gostavam de cheirar nossos narizes e as exalações de nossas bocas, o que lhes minimizava o esforço respiratório.

A não ser por especulações preconceituosas e ousadas, desconhecíamos quase completamente sua fisiologia. Apesar de suas fraquezas, eram em geral muito saudáveis, e não soubemos de nenhum que tivesse morrido de doenças. Resistiam a exames mais profundos, o que para alguns de nós se constituía em sério problema de segurança internacional.

Apesar da tecnologia de suas naves e de seus conhecimentos de física, não compreendiam nossa matemática, que viam como um conjunto incoerente de rabiscos infantis. Espantavam-se com nossa capacidade de contagem, fenômeno que estranhamente desconheciam. Éramos também incapazes de entender sua ciência, pois, para nossa grande admiração e tristeza, eram completamente ágrafos!

Donos de uma memória absolutamente extraordinária, gravavam tudo o que ouviam. Quando conversavam entre si acerca de assuntos científicos, seu linguajar se transformava em uma espécie de código, compilando em alguns poucos minutos de som informações que necessitaríamos armazenar em dezenas de unidades de memória de alta capacidade.

O intercâmbio científico, por esses motivos, não se deu como o esperado. Os esforços dos cientistas em entender e fazer uso de boa parte da ciência deles, após anos e anos de tentativas, eram largamente irrelevantes. Pouco aprendemos senão a melhorar aqui e ali o que já conhecíamos, enquanto a esperança de grandes progressos desvanecia-se como fumaça ao vento. Era estranho, mas realmente não eram tão tecnologicamente avançados como uma viagem interplanetária poderia supor. Suas máquinas eram como as nossas, inteligentemente mais bem montadas e compactas. Nada além disso.

Formava-se em todos os continentes a convicção de que a vinda deles para cá não teve outro motivo senão a própria sobrevivência. Compreendemos, por fim, que vieram mesmo para ficar, como visitas inesperadas e incômodas. Por serem apenas alguns milhares, dóceis todos e bastante prestativos, aceitamos considerá-los como um grupo étnico à parte, falando uma língua realmente estranha e pouco inteligível, cujos pontos de contato com nosso entendimento bastavam para que levassem a vida da maneira que melhor lhes conviesse.

Viviam, quase todos, à beira de rios pouco conhecidos e em praias isoladas, formando algo como aldeias de pescadores, embora fossem vegetarianos. O contato com a água lhes possibilitava o cultivo dos alimentos nativos de seu planeta, perfeitamente adaptados ao clima local. Ecologistas temiam a contaminação do ecossistema, mas estudos posteriores revelaram uma surpreendente semelhança com nossas espécies. Em verdade, nosso cardápio foi enriquecido, e a saúde dos que comiam frutas alienígenas acabou fortalecida. Com o tempo, passamos a cultivar e comer suas plantas, com expressiva redução dos casos de câncer de estômago e intestino, além de ampliação da resistência a dezenas de outras doenças.

Estávamos todos aclimatados a essa raça tão semelhante à nossa. Apesar da infinita discrição de seus costumes, não mais os percebíamos como outros. A rotina dos constantes contatos os tornou terrestres, e assim foram tratados durante muitos anos.

Mas uma convivência assim tão harmoniosa não estava destinada a durar.

Os primeiros incidentes, de fato, ocorreram logo quando chegaram. Manifestações de todos os tipos tomaram as ruas de grandes cidades, motivadas pelo medo e pela falta de informação sobre quem ou o que seriam esses extraterrestres. Um clima verdadeiramente tenso tomou conta do cotidiano de todos nós.

Campanhas de educação coordenadas pelos governos diminuíram a ansiedade da população. Focos de resistência contrários aos visitantes foram debelados, ânimos exaltados apaziguados. Restaram apenas grupos inexpressivos, mantidos sob vigilância policial, que insistiam em difamá-los, divulgar mentiras sobre seus costumes e flagrá-los em situações moralmente duvidosas, o que jamais ocorreu.

Uma descoberta extraordinária, porém, açulou novamente as tensões adormecidas.

Um pastor do meio-oeste americano, em uma excursão de evangelização ao primeiro assentamento extraterrestre, na costa do Chile, descobriu que eles mantinham tradições religiosas muito precisas, com milhares de livros orais sobre a criação, a vida e o destino do universo. A decifração dos ruídos quase incompreensíveis sobre suas doutrinas divinas direcionou o interesse de milhões, novamente excitados acerca dos visitantes.

O que mais chamou a atenção e causou generalizada inquietação em muitas comunidades foi o seguinte trecho, extraído de um de seus livros orais sagrados: “E Ka’Petha o criou à sua imagem e semelhança”.

A notícia de que eles se acreditavam semelhantes a seu deus causou reações distintas e contraditórias. Enquanto uns se admiravam com a similaridade de nossas próprias concepções, outros tomaram tais palavras como uma séria e desrespeitosa afronta ao sentimento religioso humano. Era preciso trazer mais uma vez à discussão a presença desses invasores em solo terrestre.

A absurda alegação, insuflada por interpretações maliciosas de que eles não eram nossos simpáticos e corteses coabitantes, mas sátiros portadores de planos secretos contra a raça e a cultura humana, espalhou-se célere por todos os países. Cobranças de autoridades mundiais sobre a situação e as ações dos bodes, como passaram ser chamados, causaram inicialmente conflitos diplomáticos no Chile, no Peru e no Brasil, onde a maioria se concentrava, prenunciando a escalada da violência futura.

A defesa dos bodes começou a partir de cientistas, que apontavam erros nas argumentações dos radicais e explicavam os livros sagrados como metáforas e alegorias acerca dos movimentos do espírito humano. Isso não bastou para conter a fúria dos literalistas, que exigiam agora a contenção, contagem e marcação de todos os alienígenas e seus descendentes. Que fossem castrados, vigiados e impedidos de sair de territórios limitados previamente escolhidos.

Tocados pela irracionalidade religiosa definidora de seu modo de agir e pensar, os radicais financiavam expedições para caçar e exterminar os bodes onde quer que estivessem. Após uma série de atentados no Peru e no Chile, o Brasil deu abrigo e proteção aos restantes alienígenas, demarcando vastas áreas de floresta amazônica para que pudessem viver em paz e longe de seus assassinos. Não faltou, porém, quem vendesse os segredos de sua localização, até que, após uma dezena de horríveis massacres, as poucas centenas de sobreviventes foram remanejadas para reservas indígenas do cerrado brasileiro. Durante alguns meses, viveram os bodes na pobreza, dividindo com índios já bastante urbanos um espaço vital esgotado por sucessivas invasões de terra e pela agropecuária criminosa que caracterizava a região.

A mudança, visivelmente, fora um grande erro. Enquanto viviam nos grotões da Amazônia, esquecidos de todos e longe do convívio diuturno com regiões mais desenvolvidas, o problema dos alienocídios constantes e regulares não passava de mais um capítulo na história dos extermínios indígenas daquela região. Sua proximidade agora do eixo de desenvolvimento do país fez com que a maioria das pessoas os vissem como um problema a ser resolvido o mais rápido possível. ONGs criadas para protegê-los lutavam contra grupos reacionários que insistiam em mudar as leis para expatriá-los e devolvê-los ao Chile ou a outros países que os abrigassem.

A indefinição da situação fez com que a comunidade de bodes se desestabilizasse e perdesse a coesão e o sentimento de proteção que tinham entre si. Alguns fugiam, outros procuravam se adaptar aos costumes locais. Os que se isolavam fatalmente caíam nas mãos de traficantes de mulheres e crianças, vendidos para centros de pesquisas na Europa e na China ou prostituídos em um mercado que cotava em milhares de reais uma noite de amor com uma cabra.

Após uma série de escândalos, o governo brasileiro foi indiciado como réu em um processo internacional que o responsabilizava pelos crimes cometidos, expondo ao mundo sua já tradicional e conhecida negligência com minorias. A situação foi resolvida com legislação própria mas canhestra, em que o assassinato de alienígenas constituía-se em crime ambiental, passível de multa, mas não de prisão.

A essa altura, religiosos de diversos credos retomavam, pouco a pouco, práticas medievais de perseguição e tortura contra esses visitantes que, segundo alegavam, eram mais parecidos com o diabo do que conosco. Faixas e cartazes espalhados pelas capitais e cidades do interior reproduziam imagens de manuais de bruxaria e demonologia usados em instituições de ensino de exorcismo e de outras práticas não menos odiosas, selando com a ignorância e o obscurantismo um vínculo difícil de ser desfeito.

Assim, com o apoio da maioria, a anuência omissa dos políticos e o medo de represálias por parte dos que os defendiam, os bodes foram exterminados, um a um, em espetáculos pirotécnicos gigantescos montados nas praças públicas dos municípios onde eram encontrados. Seus olhos, tocados pelo fogo, saltavam das órbitas, vermelhos; suas vozes tornavam-se particularmente graves, e seus gritos dolorosos inspiravam o terror mais genuíno que podíamos sentir. Era o retorno da Idade das Trevas e dos sorrisos de prazer assassino há muito enterrados.

O horror animalesco durou tanto quanto o furor temeroso da ralé religiosa, financiada pelo dinheiro sujo da canalha endinheirada do país. Programas de auditório serviam de palanque para pseudointelectuais que defendiam, em nome da razão, o reequilíbrio das relações éticas e religiosas, ressaltando com veemência as razões políticas dos atos de terrorismo interplanetário. Os que defendiam os direitos alienígenas eram estigmatizados como inimigos do povo, ameaçados de prisão e lançados ao limbo das relações normais da convivência pacífica.

Ao fim do longo processo de purificação, restaram alguns poucos bodes, levados a exibição em zoológicos e feiras internacionais, quando não empalhados em museus e instituições públicas. Figuravam como exemplos de invasores derrotados pela fé e pela racionalidade humana, educando de forma piedosa nossas crianças na crença de que somos a joia suprema da criação universal, privilegiados pelo amor e a proteção de um criador cego a todo horror e barbárie de que somos capazes.

08/01/2011