os anjos

Ninguém soube explicar como as coisas chegaram a tal ponto. Esta é a história de como tudo aconteceu.

*

Em uma tarde morna, o céu nublado, o jardineiro simplório daquela pequena cidade passou gritando pela praça.

Os que lá estavam, lendo jornais, jogando cartas ou passeando com as crianças, apenas se entreolharam, e voltaram aos seus afazeres.

No dia seguinte, um segundo episódio. O jardineiro novamente atravessou correndo a praça, agora gritando “Eu, vi! Eu vi!”.

Logo depois, um senhor alto, forte e barbudo que lhe vinha ao encalço, andando apressado, parou e esclareceu: “Foram as minhas filhas, as gêmeas.” E seguiu adiante, no mesmo caminho do jardineiro.

A atenção que o evento despertou fez com que os mais curiosos e desocupados procurassem saber o que as tais gêmeas fizeram. Foram à casa do pai, chegado há pouco na cidade, verificar o que acontecera.

Na varanda alta da casa, encontraram, sentadas em um banco rústico de madeira, duas meninas idênticas, trajando vestidos azuis, olhando desatentamente os passantes. Quando alguém as cumprimentava, respondiam com um simples aceno, um esboço de sorriso, e voltavam a seu estado de expressões e movimentos reduzidos.

Então a cidade passou a falar das novas meninas. Boatos e mentiras correram na boca do povo, que desejou saber mais sobre aquelas garotas de pele lívida e olhar perdido.

Uma senhora doente e desenganada, um dia, tomou a iniciativa de conversar com elas. Ao se aproximar da casa, avistou as meninas sentadas no banco, como de costume. Ao ser percebida, deu um sorriso tímido, no que foi de imediato respondido com outro por uma delas. Com isso, a velha se acercou das duas, cumprimentou-as com a cabeça, e apenas disse: “Eu também quero ver.”

Quem a observava, de longe, presenciou um estranho ritual. As meninas pediram que ela se ajoelhasse e fechasse os olhos. Depois cada uma colocou uma mão no pescoço da mulher, que sentiu um leve calafrio, mas continuou calada em muda expectativa. Então as meninas fecharam os olhos e aproximaram suas cabeças à cabeça da mulher. Poucos segundos depois, elas se afastaram, deixando a senhora a um passo de distância. Foi quando ocorreu o fenômeno.

A velha voltou o pescoço para trás, abriu os olhos e olhou para o ponto mais alto do céu. Então ela viu, tomada de espanto, uma enorme fenda luminosa, como se o manto azul fosse cortado, de um lado a outro, por uma lâmina gigantesca.

Por essa fenda, anjos de luz subiam e desciam, entravam e saiam ritmadamente. E, brilhando como sóis, chegavam à terra às escondidas, e se faziam passar por pessoas comuns, desconhecidas, que se misturavam às demais.

Ela viu também um vórtice luminoso bem no centro, ao redor do qual giravam hordas de serafins maravilhosos, cantando em coro em louvor a uma mulher de pele lívida e sorriso bondoso.

Os passantes que se aglomeraram em frente à casa nada viram senão uma velha de joelhos, de boca aberta, olhando para o céu durante alguns poucos segundos.

Passado o transe, a mulher se levantou e se jogou aos pés das meninas, chorando, dizendo repetidamente, em meio a lágrimas e suspiros, “Deus abençoe! Deus abençoe!”. Depois saiu, as mãos cruzadas sobre o peito, apressada pela rua.

A notícia se espalhou por toda a cidade como um corisco. Um frenesi correu na alma simples do povo local, que logo se prontificou a conhecer melhor as meninas. Bastaram dois dias para que uma fila de curiosos e miseráveis estropiados se acumulasse em frente à casa. Todos diziam que elas curavam as pessoas.

Mas as meninas não mais saíram. O pai, que ia e voltava para fazer compras, nada dizia. Despertava em todos uma silenciosa atenção, mas ninguém se atrevia a interpelá-lo em busca de informações.

Uma semana se passou e a turba não se dispersava. Vendedores os mais variados arrastavam suas barracas para o local. Banheiros químicos foram disponibilizados, de maneira a deter o fedor que aumentava a cada dia.

Em um domingo abafado, quando todos descansavam deitados nas redondezas da casa, as meninas apareceram e foram se sentar em seu banco de madeira tosca.

Os que as viram chegar logo cutucaram os outros, e em poucos segundos todos estavam de pé, aguardando ansiosos o que elas fariam. Mas elas não fizeram nada.

A gigantesca fila se formou novamente. Em silêncio, todos apenas observavam os próximos movimentos. Após alguns minutos, alguém lá no meio tomou a iniciativa e gritou: “Queremos ver! Mostrem para nós!”

Mas elas continuaram impassíveis. Por instantes, nada fizeram. Sequer balançaram a cabeça. Pouco depois, uma delas virou o rosto, lentamente, e encarou um homem que estava na frente.

O sujeito entendeu o gesto como um convite. Envergonhado, pediu licença às meninas, tirou o chapéu e subiu nos degraus que conduziam à varanda. Ajoelhou-se diante delas, pois assim lhe fora dito, e esperou que o tocassem.

As meninas repetiram o bizarro ritual, e as mesmas reações ocorreram. A natureza das visões, porém, pareceram diferentes. O homem ajoelhado virou a cabeça para trás e começou a chorar, convulsivo, e levantou as mãos sobre a cabeça, como se tocasse em algo. Depois se curvou, recolheu as mãos sobre o peito, e assim ficou, em lágrimas, até se levantar e sair dizendo: “Minha mãe… Ela voltou…”

Os que o conheciam sabiam que ele era órfão, um padeiro bastante competente, mas triste, que trabalhava em um supermercado na periferia da cidade. O anúncio da volta de sua mãe comoveu alguns presentes. Concluíram que as meninas o puseram em contato com espírito da falecida. E o povo as envolveu com ainda mais dúvidas.

Alinhados em silêncio, os demais atendentes aguardaram novas manifestações. Mas as meninas permaneceram impassíveis e frias diante da expectativa. Passaram duas horas, e nada.

O sol se refugiava no horizonte quando as meninas se puseram de pé e entraram em casa. A multidão, aflita, esboçou uma reação de revolta, logo dispersada pela presença do pai, que saiu à varanda e apenas disse: “Obrigado a todos!”

Entendeu o povo que naquele dia nada mais aconteceria. Com exceção dos primeiros da fila, todos se recolheram para suas casas, aguardando as novidades do próximo evento.

No dia seguinte, elas voltaram. Com menos gente à espera, as meninas saíram mais cedo, ao meio-dia. Sem cerimônia, convidaram com o olhar o próximo da fila. Novamente, o ritual, o choro, a comoção. E atenderam outros, e mais outros, durante duas horas. Ao fim, simplesmente se levantaram e entraram.

Assim foi durante toda a semana, e na semana seguinte. À medida que a notícia se espalhava, mais curiosos afluíam à casa, e maior era o dano à rotina da cidade. Mas, em um outro dia quente de domingo, as meninas não mais apareceram.

Uma tarde e uma noite de angustiada espera fizeram o povo compreender que elas também precisavam de descanso. Estavam exaustas, alguém notou, e deveriam reservar um dia santo para o refazimento das energias. O pai, que agora recebia presentes e encomendas para as meninas também não mostrou sinal de vida.

O povo esperou. E esperou mais um dia, e outro, e nada. Uma semana se passou sem notícia dos moradores. O boato que elas não mais atenderiam induziu a dispersão de boa parte dos curiosos. Os moradores locais, enfadados já com aquela novela, retomavam aos poucos o ritmo lento de suas vidas, ignorando o desenvolvimento da situação. Restaram no local apenas aqueles fiéis que, vestidos já com roupas rituais, congregavam-se ao redor das meninas à maneira de um culto ou seita religiosa.

Com a ausência das garotas, o comércio sofreu uma forte queda no volume de vendas. Santinhos, amuletos e camisas com o retrato das benzedeiras encalharam nas prateleiras. Nem vendiam os pequenos frascos com gotas da água roubada da torneira do jardim, ainda que possuíssem poderosas propriedades curativas, como era alardeado.

Os vestais, os assim denominados fiéis de vestido branco que organizavam o comércio e as filas de consulentes, resolveram indagar ao pai das meninas o que estava acontecendo.

Coincidentemente, no mesmo momento em que iam bater à porta, o pai saiu, envolvido em um cobertor de lã, e passou à beira da varanda, de onde anunciou, pálido: “Estamos doentes. As meninas precisam de ajuda.”

Gritos de pena e espanto foram ouvidos pela multidão. Uma onda de comoção deixou a população contrita. Por um momento, todos ficaram desorientados.

Um dos vestais, aproveitando que o pai ainda não entrara, perguntou: “Do que elas precisam?” E o pai respondeu: “De sol!”.

A simples resposta fez com que quatro rapazes se apresentassem ao pai dizendo que ajudariam a levá-las para onde desejasse. Aqui para a calçada? Para o campo? Para onde?

O pai deliberou e disse: “Para a praça.” Assim falando, entrou em casa, fechou a porta e logo depois apareceu com uma das meninas no colo. Ele a entregou para os rapazes, que a acomodaram cuidadosamente em um carro emprestado pelo vizinho. A outra veio também nos braços do pai, desfalecida como a primeira.

Assim que entraram no carro, batedores improvisados fizeram gestos para que abrissem caminho. O motorista, em respeitosa veneração, saiu com o carro tão lentamente que muitos entenderam estar com problemas. A população resolveu ajudar empurrando, e o motorista, desligando o motor, pôde conduzir o veículo silenciosamente pelas ruas, olhando pelo retrovisor a procissão que se formava lá atrás.

Ao chegarem na praça, encontraram um verdadeiro corredor humano. Bem no centro, em uma pequena clareira iluminada, ao lado do lago artificial, duas cadeiras confortáveis já estavam postas à espera.

O pai saiu do carro, tomou uma das filhas nos braços e a conduziu para uma das cadeiras. Repetiu o gesto com a outra e logo depois se postou ao lado da duas, sem dar mas nenhuma palavra. E assim ficou por cerca de dez minutos.

Era próximo do meio-dia, e o sol quase esmagava a todos. Mesmo assim, lá estavam elas, em seus vestidos azuis, desmaiadas à beira do lago onde carpas e tartarugas nadavam vagabundas.

Não reagiam. Mais dez minutos se passaram, e a população começou a se preocupar com queimaduras de sol sobre a pele alva das meninas. Alguém ofereceu uma sombrinha, que o pai rapidamente colocou sobre as duas. Mas nada. Imóveis, as meninas respiravam quase imperceptivelmente.

Cansado de esperar, uma jovem que estava na multidão resolveu ir embora, passando para observá-las melhor. Ao cruzar com o pai, ela tropeçou e caiu de rosto no chão. Um fino filete de sangue se abriu em sua testa.

Nesse momento, as meninas abriram os olhos, observaram a moça e deixaram o queixo cair. Olharam suplicantes para o pai, que meneou a cabeça, dizendo que não.

Os poucos que atentaram para o acontecido ligaram um fato a outro. A notícia que se espalhou como um raio foi que as meninas precisavam de sangue.

A ingênua conclusão de que eram vampiras foi logo descartada. Elas eram santas, e a natureza de sua doença estava no simples fato de que doavam muito de si, o que as enfraquecia sobremaneira.

Um médico solicitou ao pai que fossem feitos exames, nas o pai acenou com a mão e a cabeça em uma expressão de desaprovação. Após alguns momentos, o pai chamou dois vestais, e lhes disse algo ao ouvido. Rapidamente, os dois correram e trouxeram o carro. O pai, novamente, carregou no colo cada uma delas. Voltariam para casa. O bizarro espetáculo estava terminado.

Como esperado, ninguém soube precisar quando sairiam novamente. Cogitaram-se hipóteses absurdas sobre o estado das meninas, e também do pai, que pareceu não estar nada bem. Dia se foi, e outro veio, e o consistente sumiço das duas deu azo a novas especulações.

Em meio a boatos e maledicências, uma adolescente das redondezas veio com um experimento terrível. Subiu em uma escada até a janela do quarto das meninas. Com um bisturi, fez um pequeno corte no antebraço, que esfregou no vidro, imprimindo ali uma enorme mancha de sangue, logo coagulada.

Foi impressionante ver. Naquele dia, no fim da tarde, as meninas voltaram à varanda. Agora encaravam a multidão, como se procurassem alguém. Quando enfim localizaram a jovem audaciosa, fizeram um gesto, como se a chamassem, e voltaram a se sentar no banco velho.

A adolescente atendeu ao chamado. Subindo os degraus que davam à varanda, ajoelhou-se diante das meninas, que sorriram com sutileza. Dessa vez, o ritual seguiu outro rumo. Elas encostaram as mãos nos seios da garota, com evidente lascívia, provocando um êxtase até então não presenciado.

A jovem tremeu, os olhos revirados, e passou a convulsões violentas. Gemeu horrivelmente, babou, e alguns minutos depois estava prostrada no chão, suada e inconsciente. Quando recobrou os sentidos, a primeira coisa que fez foi procurar um canivete ou alguma coisa cortante na bolsa. Queria mais, muito mais.

As meninas, porém, se levantaram e entraram, indiferentes. Não adiantaram as súplicas desesperadas da jovem, segurada pelos vestais, que parecia transformada em outra pessoa. Ao descer as escadas da varanda, foi recebida por olhares curiosos, aos quais não correspondeu, abalada e desnorteada que estava. Descabelada, suja e empoeirada, a adolescente correu dali, muda e chorosa.

Todos compreenderam que as meninas reagiam ao sangue. Na praça, e agora em casa, foi o sangue o gatilho de comportamentos suspeitos e incomuns.

A experiência da jovem na janela foi repetida por um outro sujeito, que deixou seu sangue se derramar, formando uma pequena poça escura e brilhante, bem sobre o parapeito da janela. Depois se afastou e aguardou ansioso. Mas as garotas não saíram.

De repente, um homem forte e bem de saúde, assomando do meio do povo, avançou para a frente da multidão. Repetiu o gesto sacrificial, mas dessa vez deu apenas um pico na ponta do dedo médio, que levantou, audacioso e zombeteiro, em direção à casa das meninas, sob gritos de aprovação e risadas as mais escrachadas do populacho ignorante que assistia ao espetáculo.

E o homem pulava, e dava risadas, xingava palavrões grosseiros e imitava vampiros sugando donzelas inocentes, o que provocou, pela primeira vez, uma onda de riso e alívio na população já cansada de tudo aquilo.

Ao fim da peça grotesca e improvisada, muito perceberam o estado de fascinação em que se encontravam, e tomaram rumo de casa para nunca mais voltar. O número de consulentes diminuiu drasticamente, e até alguns vestais debandaram do grupo fiel. Apenas uma dúzia de pessoas permaneceu no lugar.

À noite, com a multidão desesperançada já recolhida, a jovem que fizera a mancha na janela voltou. Tremia, envolvida em um casaco, e se postou fixa olhando para a porta da casa. Respirava ofegante, e parecia muito inquieta. De repente, levantou um punho em direção à casa e o cortou com uma faca. Deu um grito, e caiu de joelhos sobre a calçada.

Alguns vieram em seu socorro, mas ela os repeliu e ficou lá, chorando, com o sangue escorrendo pelas mãos. Olhava para a casa, aguardando.

Então, um sorriso enorme se fez em seu rosto. Ela começou a rir como uma louca quando viu que as meninas saíam de casa. Elas vieram até a jovem, na rua, e a conduziram para dentro. Pela primeira vez, alguém entrava na casa.

A manhã do dia seguinte surgia mansa no horizonte quando a jovem enfim saiu, atormentada por algo visivelmente sinistro. Na rua, rodeada pelos vestais, que então a invejaram, ela abriu a boca e disse: “Tenho uma missão”.

A adolescente saiu pela cidade tocando as pessoas, que compreenderam de imediato o propósito de as meninas estarem ali, entre eles, fazendo o que faziam. E que era hora de avançar nos trabalhos.

A profetiza, como foi chamada, não deixou uma pessoa sequer sem ser tocada, nem mesmo crianças. Todos entenderam e desejaram participar daquela que seria a construção de um novo mundo.

No dia seguinte, derrubaram as árvores da praça. O lago foi aterrado, os peixes e demais animais transportados para um parque distante, os bancos arrancados. A praça deu lugar a um imenso terreno muito liso e empoeirado, ao qual caminhões transportavam todo tipo de material de construção. Em especial, paralelepípedos gigantes do tamanho de mesas.

Durantes dezenas de semanas, a vida de todos foi severamente alterada pelos esforços de construção. Pessoas mudaram de emprego, pontos comerciais ao redor da praça foram transformados em depósitos ou postos de contratação de mão de obra. Ruas tiveram a mão de direção alterada, as escolas passaram a funcionar em horários diferenciados. Também, de maneira sutil, as entradas da cidade foram aos poucos sendo fechadas, e o contato com o mundo exterior foi reduzido ao mínimo.

Ao fim de um ano quase exato de sacrifícios e isolamento, a obra terminou. Ainda se viam restos de madeira, cimento petrificado e latas de tinta vazias por todos os cantos. Uma limpeza seria feita em breve, mas já era possível dizer que tudo terminara. Restava apenas chamar as meninas.

Os vestais comunicaram o fato ao pai. Poucos minutos depois, as meninas apareceram em frente de casa, para espanto de todos, com longos vestidos dourados e cabeças raspadas, segurando longos bastões, com pinturas no rosto à maneira de tatuagens.

Dirigiram-se à pé para a praça, no que foram acompanhadas por uma multidão silenciosa, ciente do que aquele dia magnífico seria o primeiro de uma nova era.

Assim caminharam, mudas, com a profetiza ao lado. A procissão durou meia hora, quando enfim a praça foi alcançada. As meninas pararam e contemplaram a imensa construção. Depois sorriram, e a profetiza pôde ver, incrustadas nos dentes alvos das duas, pequenas pedras de esmeralda e jade.

Diante delas, o produto da dedicação fanática de uma cidade vivendo sob o torpor de experiências mentais insanas. De longe, de sobre as montanhas que ladeavam o vale, era possível ver as verdadeiras dimensões daquela loucura coletiva: nada menos que uma imensa pirâmide asteca encimada por um templo dourado!

A pirâmide possuía lados perfeitamente simétricos, com uma gigantesca escadaria central em um deles. Em frente a ela, as meninas se voltaram ao sol, fazendo gestos de agradecimento e reverência. Depois começaram a subida íngreme pelos degraus enormes. Atrás, a profetiza e o pai, que as acompanharam até o topo.

Lá chegando, fizeram um movimento com os bastões, como se convidassem a população para acompanhá-las. Então adentraram o templo, enquanto o pai e a profetiza montavam guarda do lado de fora.

Uma romaria de gente se formou, indecisa. Todos haviam compreendido, há quase um ano, quais seriam as tarefas naquele momento. Mas, agora, pareciam vacilar.

A senhora que primeiro elas tocaram se adiantou, rompendo a inércia geral. Com dificuldade, começou a subir a escadaria fastidiosa. O gesto despertou imitações, até que todos começaram, lentamente, a galgar os degraus em direção ao templo.

Lá de cima era possível ver os rebanhos confinados nos espaços estreitos. Era possível ver o mar de destroços das casas derrubadas para dar vazão ao fluxo de materiais, e as rotas improvisadas que conectavam a praça às pedreiras distantes. O rio que banhava a periferia fora desviado, canalizado e posto a servir as obras como um imenso aqueduto. Nada, nem um aspecto da vida calma e modorrenta do povo permaneceu intocado.

Nas escadas, antes de chegar ao pequeno pátio que antecedia a entrada do templo, uma fila comprida de consulentes. Ordenados pelo pai e pela profetiza, apenas um de cada vez era permitido aceder ao pátio. A velha senhora foi a primeira.

Ao perceber que alguém as esperava, as meninas saíram do templo. Uma delas encarou a velha, que sorriu, caindo de joelhos diante das duas. Elas fizeram um gesto para que a mulher se levantasse e as acompanhasse até um canto do pátio.

Lá na beirada, construída com mármore de incrível beleza e polidez, uma mesa de mais de dois metros de comprimento e um de largura. A profetiza convidou a velha para se deitar.

Então uma das garotas aproximou-se dela, enquanto a outra caminhou para frente da escadaria. Lá chegando, abriu vagarosamente os braços e, nesse momento, um silêncio morto cobriu a cidade. Todos encaravam as menina, que começou a recitar palavras em uma língua estranha. Versos do que parecia uma ladainha indígena de uma terra ignota caíram sobre os ouvidos do povo, que os absorveram como um sonífero entorpecedor. Após cinco minutos de cantoria, a população se encontrava muda, enceguecida pela voz hipnótica da menina.

Daí o verdadeiro ritual teve início. A menina próxima à mesa pôs as mãos sobre os olhos da mulher, que começou a ter convulsões violentas e agoniantes. Ela retraía os músculos com tamanha força que era como se pulasse deitada sobre a mesa. Subitamente, depois de dois minutos de martírio, ela desfaleceu, morta.

Nesse momento, acercando-se lentamente da mesa sacrificial, o pai sacou uma faca dourada da cintura e cortou o pescoço da velha. Dois rios de sangue jorraram pelos lados da mesa, e caíram em sulcos sutis sobre o mármore, escorrendo para dois cálices bojudos no chão. Depois de cheios, a profetiza os levou para os cantos das escadas, onde foram esvaziados em canaletas que corriam longamente do topo até o chão da pirâmide. Mas era preciso muito mais para completar a fusão entre o céu e a terra…

Das faldas de suas roupas rituais, o pai tirou uma espada reluzente, afiadíssima, e com um só golpe degolou a velha. Então entregou a cabeça à profetiza, que sem demora a levou à beira da escadaria e a jogou rente à fila de consulentes. A cabeça rolou veloz, a grandes saltos, espargindo respingos vermelhos de sangue à medida que rodopiava no ar. Quando atingiu o chão, com os olhos arregalados e a língua saliente, a população sentiu um vazio no estômago, e se alinhou para que o próximo subisse ao pátio.

Ninguém corria dali. Como que uma força magnética obrigava as pessoas a presenciarem o mesmo ritual macabro ser repetido e repetido, durante horas sem parar, com cada pessoa da fila.

O terror durou dias, com pequenos intervalos. Era como como se as meninas não se cansassem, nem o pai, nem a profetiza. A população, que parecia não sentir fome, aguardava muda sobre os degraus. Nada indicava qualquer mudança naquele estado absurdo de trágica submissão.

Até que, em uma tarde quente, um carro despontou na estrada sobre a colina que margeava a cidade. Vinha de fora, e aparentemente conhecia bem o caminho. Dirigiu-se à praça e, quando parou, dele saiu um homem, espantado, com os olhos bem abertos. Andou ao redor da pirâmide, o coração pulando pela boca, quando chegou à escadaria principal. Viu a fila de pessoas, e viu, ao lado, uma pilha enorme de cabeças amontoada sobre os degraus. Mais adiante, no outro flanco, um mar de corpos degolados servia de comida a urubus e coiotes.

Esse era o mesmo sujeito que havia encenado o teatro grotesco na casa das meninas, um ano antes.

Porque passara esse período fora, não se submetera aos ritos hipnóticos das meninas. Não tinha parentes ali, e não recebera uma notícia sequer dos acontecimentos. Ele era o único que estava livre do sono dogmático que dominava o povo.

Durante alguns minutos, ele não entendeu o que ocorria. Procurou acordar alguns velhos conhecidos, enfileirados sobre os degraus, mas ninguém falava nada. Sacudiu homens e mulheres que pareciam tomadas por um torpor profundo, mas não houve nenhuma reação.

Foi quando viu uma mulher, no alto, jogar uma cabeça pela escada. Como as outras, a cabeça rolou espalhando espirais de sangue ao redor. Tomado de asco e nojo, ele teve ânsias de vômito, quis correr para bem longe, mas decidiu esperar e ver o que aconteceria depois.

Então, lá em cima, a mulher se afastou da beira da pirâmide. Ele subiu os degraus, cuidadoso, observando a fila de zumbis que aguardavam o momento do sacrifício.

Chegando no alto, pôde entender o que acontecia. Duas meninas carecas, cheias de sangue no rosto, eram flanqueadas por um homem grandalhão e barbudo que tinha, igualmente, o corpo lavado por litros de sangue. A mulher que jogara a cabeça montava guarda ao lado do homem.

Subitamente, a profetiza percebeu que alguém furara a fila. Ela se achegou ao homem que tinha a boca aberta e o olhar estupefato e lhe solicitou que descesse e esperasse sua vez. Mas o homem não entendeu bem. A profetiza insistiu mais uma vez, quando o sujeito, como que acordando de um sonho, correu para a mesa, desejando salvar uma mulher que lá estava. As meninas o viram chegar correndo e se afastaram com medo. O pai se aproximou do homem, agarrou-lhe pelo braço e indicou a escada, como se dissesse para descer.

Nesse instante, o sujeito viu a espada do pai. Sem pensar duas vezes, roubou-a para si e passou a empunhá-la ameaçadoramente. Espantados, todos se afastaram do sujeito. Então ele tirou a mulher da mesa, a fez caminhar até a beirada da pirâmide e lhe indicou a escada. Mas a mulher não desceu. Começou a gritar e a pedir para voltar. Ela queria estar lá, na mesa, para conhecer as maravilhas do céu prometido. Foi quando a profetiza, percebendo que o sujeito se distraíra, avançou sobre ele, agarrando-o pelo pescoço.

Uma luta frenética foi travada. Os dois jogavam-se mutuamente de um lado a outro. A profetiza o mordia, puxava seus cabelos e apertava seu pescoço. O sujeito gritava e balançava o corpo, até que, com alguns movimentos mais inteligentes, conseguiu lançá-la no chão. Sem pensar duas vezes, tomou a espada e rasgou o ventre daquela louca, derramando suas entranhas no chão do pátio.

Tomado de medo, o pai correu para proteger as filhas. Mas o sujeito, insano, avançou sobre os três. Com golpes violentos de espada, matou o pai, partiu crânio de uma das duas meninas e degolou a outra com uma fúria incontrolável. Ensanguentado, arfando com toda força de seus pulmões, aproximou-se da mulher que tentara salvar, apenas para vê-la correr e se lançar da pirâmide sobre a pilha de cadáveres lá embaixo, onde caiu, rolou, e conseguiu ainda sair cambaleando pelas ruas.

Um instante depois, como que por um milagre, as pessoas da fila acordaram. Gritos terríveis e choro desesperado pontuaram as reações da população, agora desperta, que começou a entender o que lhe acontecera. A maioria desceu as escadas e correu para casa, em prantos. Uns poucos, curiosos, subiram os degraus e viram quatro corpos inertes sobre o mar de sangue no piso do pátio.

Naquele dia, a loucura toda teve fim.

*

Algumas semanas se passaram. Digeridos os últimos acontecimentos, a vida da cidade retomou aos poucos sua rotina. O tal sujeito nunca mais foi visto, e a pirâmide teve seu acesso interditado. Falar sobre o ocorrido se tornou um tabu entre o povo, e a vida corria seguindo a cansada tradição da cidade.

Todos se escondiam em uma rotina de aparente tranquilidade. E assim a coisas caminharam, até que um grupo de cidadãos mudou toda a história. Um projeto bem elaborado para reaproveitar o espaço da pirâmide foi proposto, e a população passou a apoiá-lo com mentes e corações unidos.

Alguns dias depois da proposição, a pirâmide foi desinterditada, lavada e reformada. O templo no topo, completamente reestruturado, decorado e provido de bancos, brilhava com a nova pintura. Mais alguns dias, e cada cidadão recebeu, na porta da casa, o convite para a reinauguração.

E o grande dia chegou. A população, buliçosa e excitada, se acumulou em frente à escadaria central, aguardando ansiosa instruções sobre o que fazer. Na hora combinada, alguns moços de camisa branca, terno e gravata pediam que todos formassem uma fila. Ascenderiam ao templo, um a um, onde seriam recebidos com toda cortesia e atenção. E assim foi feito.

A enorme fila formada alimentava aos poucos os enormes degraus de pedra da pirâmide. Cada qual subia a escadaria cheio de expectativa e curiosidade. Chegando o topo, eram recebidos por moças bem vestidas que apontavam a entrada do templo, convidando a todos que o adentrassem, se sentassem e atentassem para o que acontecia.

Lá dentro, detrás da antiga mesa de sacrifício, transformada em imponente altar, estava aquela mulher salva do sacrifício, vestida como uma grande e antiga deusa. Com gestos largos e palavras incompreensíveis, mancando, oficiava um ritual solene que a todos fascinava.

No braço daqueles que se aproximavam, ela fazia um pequeno corte, e transformava a carne extraída em pão, e o sangue derramado em vinho, dando assim de comer à população faminta e voraz, que aprendera também a se nutrir de promessas vagas acerca do sentido último de suas vidas miseráveis…

13/04/2015