o autor de ficção

Então, é a minha vez?

Os outros três anuiram, aguardando o que Anderson tinha a dizer enquanto terminavam o jantar no “China Wow”. Cecília empurrava os últimos grãos de arroz com o hashi, Paulo consultava as horas e procurava um guardanapo para enxugar o suor da testa. Eduardo recostava-se na cadeira, um braço para trás, observando as luzes dos carros em fila lá embaixo na rua. A noite consolidava lentamente seu domínio.

— Então lá vai: quem é o nosso autor?

Um breve silêncio. Eduardo, que seguia com os olhos um casal de idosos entrando na padaria do outro lado da rua, retomou a atenção e perguntou:

— Como?

— Quem é o nosso escritor, quem nos escreve agora? – repetiu Anderson, com um sorriso quase imperceptível no rosto.

Cecília inclinou-se sobre a mesa. Paulo se manteve atento, com os braços arqueados apoiados nas pernas.

— Não saquei. Alguém sacou? – Eduardo perguntou.

Anderson se virou para Eduardo, sorriu, e passou a explicar.

— Somos escritores, ou pretendemos ser. Você aí, cabeludo folgado, já escreveu algumas letras de música com personagens e histórias. Você os imaginou completamente, e eles cresceram na sua cabeça enquanto você escrevia os versos. Em um dado momento, eles pareciam vivos para você, e velhos conhecidos.

— É mesmo. – acrescentou Eduardo, voltando novamente o rosto para fora ao ouvir buzinas nervosas bem abaixo deles.

— Pois então. Quem sabe se nós aqui não somos personagens de alguém?

— Ah! – exclamou Cecília, virando a cabeça – Nada original. Pula.

Anderson fez um gesto para que esperasse, e continuou.

— O que quero dizer não passa pela ideia batida de que somos a ficção de um deus ou os personagens de algum escritor modernoso que está mexendo os pauzinhos… ou a caneta!

— Ou digitando! – exclamou Paulo – Vai me dizer que ainda escreve com caneta e papel?

— Só para fazer esboços…

— Pelo amor de Deus! Já te disseram que existem programas de mapa mental?

— Mas vamos lá – retomou Anderson. O que eu quero é determinar a personalidade de alguém que, se existisse, estaria nos escrevendo. Aqui e agora. Que cara é esse? Por que ele nos colocou neste restaurante e nos reuniu mais uma vez para discutir literatura? Quem é que escolhe essas toalhas de plástico para cobrir a mesa, quem é que idealiza um restaurante de comida chinesa…

— E japonesa! – observou Paulo, colocando um uramaki de salmão na boca.

— … pois então, quem é que coloca quatro pessoas interessadas em literatura dentro de um espaço diminuto, no segundo andar de um prédio de esquina, logo na hora do rush, e põe todo mundo para conversar sobre esse monte de coisas que vivemos conversando?

Eduardo coçou a testa, jogou a franja para trás e se inclinou sobre a mesa. Cecília mexeu na bolsa, pegou um batom e retocou a maquiagem.

— Imaginem só – Anderson disse, com uma paradinha até que todos prestassem atenção – Estamos diante de uma engenharia reversa. Quem escreve, escreve a partir de um amálgama de experiências próprias, experiências alheias e observações ocasionais, jogada no liquidificador da imaginação. Aquilo lá cria uma vitamina de histórias, mas todos os detalhes, todas a imagens, e até mesmo as palavras, são filtradas pela personalidade do escritor. Tem como saber quem é essa pessoa, que personalidade é essa, através de seus escritos? Depois de saber, tem como prever o que ele escreverá depois, e assim mudar o nosso destino?

— Estamos diante de mais uma terapia? – brincou Cecília – Ou do renascimento do autor? Ou melhor, da ressuscitação desse morto que…

— O cara só pode ser um sádico, meu chapa! – afirmou Paulo, interrompendo convicto o discurso de Cecília, que ficou de boa aberta, paralisada com a grosseria.

— É por aí. Mas por que sádico?

— Sádico porque vai nos fazer sofrer, sempre, se quiser leitores. Quem é que quer ler a narrativa da vida de uma pessoa feliz?

— Tudo bem – ponderou Anderson – Um sádico. Mais alguém?

— Um tarado? – disse Eduardo, sem deixar de observar os passantes lá embaixo.

— Tarado? – Cecília franziu a testa.

— Entendi – disse Paulo – É um tarado mesmo. Ele nos escreve em todos os detalhes. Sabe o que você faz, o que eu faço, em todos os momentos. Certamente devem ser mais interessantes os momentos em que estou com meu namorado. Isso se esse autor aí é gay também. Se for mulher, é curiosa. Em todo caso, ou voyeur. Frustrado.

— Sádico tarado… A reencarnação do Marquês de Sade? – e Cecília deu um sorrisinho. Eduardo deu duas risadas leves.

— Nosso querido Marquês – retomou Anderson – hoje pareceria como uma carola que vive na igreja!

— É mesmo. – disse Paulo, coçando o peito.

— Mas vi que vocês entenderam. Então vamos fazer assim: você é 1, você é 2 e você é 3 – e Anderson apontou para Paulo, Cecília e Eduardo – Paulão, pode começar.

Paulo olhou para o relógio, e começou:

— Rapidinho. Tenho que ir depois, beleza?

Todos concordaram. E Paulo começou:

— Esse autor é sádico, como eu disse. Ele não suporta viver, fracassado que é, e nos cria para ver o que ele mesmo pensa da vida. Tem uma sexualidade conturbada, precisa resolvê-la…

— Como você? – interrompeu Eduardo.

— … e continua escrevendo sem parar, para ver no que dá. – Paulo prosseguiu, sem sequer olhar para Eduardo – Esse autor precisa escrever para fazer da escrita sua tábua de salvação. Ele não pode confessar o que sente e não ser para a folha em branco. É um incompreendido que se acostumou a essa solidão que lhe parece gratuita, imposta de fora para dentro. Se ele me criou, é porque ele quer dar vazão a uma certa tendência militante, porque em mim isso é muito forte. Ele me coloca sem saída, e não me dá escapatória ao fato de que desejo falar e militar pelas causas que defendo, pela igualdade e pelo respeito à diversidade. Quem, senão um sujeitinho problemático, me criaria assim? Deve ser muito egocêntrico também.

Paulo pausou por uns instante, gesticulando o vazio, como se estivesse procurando palavras. Mas logo depois se calou, olhou para baixo, e assim ficou, concentrado, por alguns segundos.

Anderson olhou para Cecília, que não percebeu o olhar. Até que ela se virou para Paulo e disse:

— E?

— E o quê? – disse Paulo – Acabou.

— Posso?

— Pode.

Cecília ajeitou o vestido com uma leve levantada. Ajeitou o copo mais à frente sobre a mesa e começou alisando o cabelo, olhando para o alto. Afastou o prato para o lado e passou a falar:

— Ele é um artista. Sádico, concordo, problemático, talvez, mas um artista. Ele tem um prazer imenso na escolha das palavras, procura filigranas de significado, e se comporta como se procurasse dançar com o ritmo da frase. É uma atividade puramente lúdica, sem objetivo que não o de divertir-se, sem procurar atingir algo lá na frente. Paulão, não concordo que seja um militante.

— Mas é! – disse Paulo.

— Não sei… – continuou Cecília, ajeitando a franja para o lado – Mas vamos lá. O sujeito é irracional às vezes, e espera que um fluxo alterado de consciência o desperte para uma realidade utópica, ou distópica, e o faça entrar nela. Ele procura compreensão intuitiva, não razões, para a sua existência, que não é vazia, mas rica de símbolos e imagens poéticas. POr que ele faz isso, só mesmo o avantajado lobo frontal de seu cérebro para responder…

Cecília fez um gesto com as mãos querendo mostrar o quão avantajado era o cérebro do escritor. Todos riram.

— Novamente, como eu disse, o cara tem problema. Tem problema! – Paulo falou sorrindo, repetindo o gesto de Cecília, e todos caíram na gargalhada.

Anderson, percebendo o rumo das conversas, destacou:

— Vocês dois aí… – e apontou para Paulo e Cecília – não criaram um autor à própria imagem e semelhança?

Sem esperar a resposta dos amigos, Eduardo adiantou:

— Criaram, mas é assim mesmo. Percebi isso, e já preparei um sujeito completamente diferente. Talvez seja tão diferente de mim que vocês vão perceber que ele sou eu, mas em negativo. Mas estou alerta para isso também, e procurei ser objetivo.

— Quer dizer que você criou um cara estranho só para contrariar? – atacou Cecília.

— Não, nada assim tão radical. Fiquei viajando sobre um autor real, um fingidor profissional. Não um Fernando Pessoa cheio de heterônimos, mas um escritor que olha para fora e dá ao público o que o público quer. Nesse sentido, o nosso autor poderia muito bem estar nos criando de maneira técnica, sem aportes gigantescos de sua personalidade.

— E isso é possível? – perguntou Paulo, virando-se para Anderson, que concordou com a cabeça.

— É possível. É a realização do que Poe queria com sua filosofia da composição. Científico.

— Bobeira! – disse Cecília, virando o rosto para o lado.

— Posso falar? Posso falar?

— Fala, Eduardo! – Cecília ironizou, virando os olhos para cima e fazendo cara de cansada.

— Então é o seguinte.

Eduardo tinha uma mania de erguer o indicador como se quisesse dizer algo bombástico, mas era apenas um tique muito bem planejado. Viu alguém um dia fazer isso, talvez um ator na televisão, ninguém se lembrava direito, e ele passou a imitar quase inconscientemente. Era agora sua marca registrada. E assim, com o dedo levantado, começou:

— Esse autor é um observador. Tem um catálogo de personagens em casa, um outro catálogo de objetos, um outro de lugares. Ele mesmo fez isso, não comprou nada pronto. Estudou o mito do herói, rejeitou o mito do herói e resolveu catalogar toda a experiência humana. Agora usa um computador para combinar cada elemento.

— Ele tem um gerador de trama artificial? Um plot generator? – perguntou Cecília.

— Isso mesmo. Mas não confia só na máquina. Ele tem instintos mais seguros e mais… loucos, por assim dizer. Mesmo que seja bastante científico no que faz. Bastante matemático.

— Nada a ver! Não dá para confiar a uma máquina a criação literária. E a poesia? – Cecília cruzou os braços e franziu as sobrancelhas.

— A poesia – retomou Eduardo – está confinada dentro de um jogo de regras que não conhecemos… mas que os computadores, à base de força bruta ou de uma futura inteligência artificial singular poderão um dia revelar para nós. E já tem muita poesia computacional por aí. Andei fuçando com isso, e saiu muito mais do que um monte de versos dadaístas. Sério: alguns pareciam até geniais! Fiquei impressionado!

— Hm! – retornou Cecília, cética.

Por alguns segundos, Eduardo voltou a olhar pela a janela. Concentrada a atenção na esquina, atraiu os olhares dos demais amigos, que queriam saber o que tanto ele observava. Percebendo que todos esperavam uma reação, Eduardo voltou ao discurso:

— Gente, dá uma olhada. Todos esses detalhes… – Eduardo volteou o dedo no ar, indicando as lâmpadas alaranjadas, os quadros com cenas marítimas que imitavam Hokusai, as esculturas de ideogramas – Vocês se lembram das aulas de escrita criativa? Eu achava uma grande bobagem, aquele lance todo de observar, etcétera, porque eu achava que tinha vivido o suficiente para conseguir imaginar um universo inteiro, e que o leitor acrescentaria a “carne” de um esqueleto de detalhes compostos de cores, sons, cheiros, impressões táteis, gostos…

— …os cinco sentidos, o tempo e o espaço, detalhes que pontuam o universo, a escolha das palavras, a frase, a oração… Como isso pode ser bobagem? – Cecília remendou.

— Pois é. Pois é. Mas é muito pior: ninguém consegue detalhar um universo como o próprio universo. Ninguém consegue recriar na cabeça um universo mesmo com uma chatíssima descrição no estilo de José de Alencar. Ninguém aguenta. Quer ler logo, chegar ao fim! Quem estaria disposto, se não fosse um chato de galochas, a descrever detalhes irrelevantes, como a boina bege daquele velhinho lá embaixo, de braço dado com sua velha, e aquele menino que saiu com a mão cheia de balas de maçã verde, tropeçou e esparramou tudo no chão, ralando o joelho? E esse forte cheiro de pão assando, e aqueles padeiros no andar de cima, tossindo, limpando o suor da testa com as costas da mão e voltando a sovar a massa?

— Ui, que nojo! – exclamou Cecília, fechando os olhos e balançando a cabeça, com um expressão de asco.

Eduardo parou, sorriu e rapidamente se virou para Cecília:

— Ceci, você lê devagar, quase parando. Mas esse lance de fruição da palavra, de escritor de linguagem, é pedantismo burguês. Sua boba! – e deu a língua para Cecília.

— É nada, seu porco! – e Cecília revidou dando a língua de volta.

Todos riram. Anderson interveio na conversa e acrescentou:

— Mas vamos voltar ao tema: quem nos escreve?

— Chapa, – Paulo tomou a palavra – ninguém nos escreve! Impossível compor a personalidade do criador deste universo aqui. Vai ser, quando muito, imagem e semelhança mesmo, no velho sentido inverso, que um grego lá atrás disse: se os leões tivessem deuses, estes teriam quatro patas e juba, ou sei lá o que os gregos diziam.

— Será?

— Com certeza! Absoluta! – e deu um tapa na mesa.

A certeza de Paulo e a veemência com que colocava suas opiniões pareceu ter encerrado o assunto. Os quatro ficaram pensando por alguns segundos.

— Pessoal, – retomou Paulo – o papo está bom, mas eu vou nessa. Um abraço aos que ficam!

Paulo afastou a cadeira para trás e se levantou, acenando a todos, e desceu as escadas apressado.

Então Eduardo aproveitou a deixa:

— Pessoal, eu também vou nessa. Alguém mais?

— Eu! – disse Cecília, já pulando da cadeira – Anderson, você vai ficar por aí?

— Agora que descobrimos que ninguém nos escreve, não temos mais o que fazer! Liberdade! – e levantou os braços para o alto, comemorando a vitória do grupo sobre a pergunta que direcionou a discussão do dia.

Os três saíram conversando amenidades, e desceram as escadas combinando o encontro do dia seguinte. Pagaram e se dirigiram à saída do restaurante. O trânsito havia diminuído. A locadora de vídeo ao lado da padaria, do outro lado da rua, era o único lugar mais agitado da região, com um entra-e-sai constante.

Até que Eduardo, antes de sair do restaurante, fez uma pergunta sem muita expectativa:

— Aqui, e se foi o nosso autor que fez com que falássemos tudo aquilo, para ele mesmo pensar sobre literatura? E se agora que ele descobriu o que queria, desejar nos descartar na lata do lixo?

Anderson sorriu para Cecília, que respondeu:

— Então ouviríamos um tremendo estrondo vindo do céu, um barulhão de papel sendo amassado e jogado no lixo! Está ouvindo? – e levantou o dedo para o alto, virando o olhar, como se procurasse escutar alguma coisa.

Todos riram alegres. E continuaram a caminhar pelo passeio, quase dobrando a esquina.

Subitamente, quebrando violentamente a calma do momento, uma correria desesperada teve início. Pessoas gritavam alucinadas, dirigindo-se à esquina onde se encontravam os três amigos. Vinham de todos os lados, completamente enlouquecidas. Anderson, Eduardo e Cecília encostaram na parede, com o coração disparado, enquanto um enxame de loucos corria em sua direção. Pessoas fugiam de um incêndio gigantesco que surgiu cercando a cidade. Labaredas enormes e amarelas que iam do chão ao céu enegrecido avançavam rapidamente, enquanto homens e mulheres pareciam queimar por combustão interna, virando uma pilha de cinzas negras de um segundo a outro.

No meio do que parecia ser um armagedom sem sentido, do calor que aumentava abafando o ar e tornando a respiração difícil, os amigos viram que Paulo cambaleava no meio da multidão. Ele se aproximava sem camisa, chamuscado, batendo as mãos sobre a cabeça.

— É ele! – gritava ensandecido – É ele! – e caiu no chão, bem perto dos três, com um baque surdo.

— Ele quem, homem? O que está acontecendo? – perguntou Cecília, esbaforida, sacudindo Paulo no chão.

Paulo não respondia mais. Eduardo, com os olhos arregalados tomados de terror, tomou a palavra, enquanto a padaria da frente era engolida por uma fenda descomunal que se abria no chão:

— É ele, é ele mesmo! Ele está picotando os papéis e queimando os rascunhos de seus contos fracassados!…

28/10/2015