Começou com um zumbido. Amorfo, persistente, constante, no ouvido esquerdo.
Remédios, lavagens e tapas no rosto de nada adiantaram. Tentou se acalmar, deitando-se de lado, à espera de um sono que trouxesse melhoras. Dormiu, esquecendo-se do problema.
Ao acordar, no dia seguinte, o zumbido ainda estava lá. Aconselharam-no ir ao médico, o que ele fez prontamente.
Não encontraram nada. Saiu com prescrições de exames e remédios para um ouvido aparentemente perfeito. Durante a semana, ele conviveu com esse incômodo que lhe tirava toda a concentração.
Então o zumbido foi tomando forma. Lentamente, uma voz surgia em seu ouvido, como se alguém, de boca fechada, aprendesse a meditar, entoando um mantra contínuo e calmo. Sutis variações de tom fizeram com que ele prestasse atenção e passasse o dia observando a evolução da voz em sua cabeça.
Subitamente, a voz silenciou. E assim continuou, silente, pelo resto do dia, trazendo o merecido alívio.
No dia seguinte, porém, a voz voltou. Agora de maneira bem nítida: era o choro de uma criança.
Quando o choro apareceu, ele correu pela vizinhança, procurando a criança em perigo. Pouco depois compreendeu, espantando, que a voz voltara. Aquietou-se a contragosto e passou a escutá-la.
Era uma atividade que consumia o seu dia. A criança chorava, incessantemente, alterando os estados de espírito de um momento a outro. Às vezes ria, às vezes gritava. Em certas horas, parecia estar sob tortura, soltando berros desesperados.
Ele levava a mão à cabeça, espancava o rosto, mas a voz não silenciava. Pensou enlouquecer, mas resistiu até a noite, quando dormiu, exausto, com o choro transformado em soluços nervosos e palpitantes.
Pela manhã, uma nova surpresa. O choro cessara por completo. Em seu lugar, uma risada sádica e satírica dominava a paisagem sonora de seus pensamentos.
E a voz ria e gargalhava, demente, como se a própria loucura se materializasse em um tom escabroso e mordaz. Um êxtase de facadas, degolações e assassinatos rompeu em sua mente durante todo dia. A voz arfava, tossia, e voltava com gargalhadas macabras a todo instante. Apavorado, correu para o quarto, enfiou-se na cama e passou o dia se contorcendo no inferno que a voz criara. Gemia, chorava de desespero ao ouvir as gargalhadas mais horrorosas que a voz humana pode criar.
Como antes, dormiu o sono do cansaço profundo, e acordou, novamente, sem ouvir mais nada. Abriu os olhos, as mãos ainda sobre os ouvidos, e percebeu que a voz sumira. Torturava-se em pensar se voltaria, se aquele fora um lapso momentâneo de loucura ou apenas uma contingência silenciosa no mar dos ruídos que o devoraram nos últimos dias.
Mas, não. Houve silêncio. Naquele dia, ele seguiu sua vida normal, sem ouvir mais nada. Esperou o regresso da voz, mas ela não voltou. Dormiu ansioso, acordou sem ouvir nada e resolveu tocar a vida.
Naquela tarde, almoçando tranquilamente em seu restaurante costumeiro, ouviu uma palavra: carne. Voltou-se para trás e agradeceu, imaginando ser o garçom. E voltou a comer normalmente. Mas a palavra se repetiu: carne.
Olhou para o lado, não viu ninguém. Aí entendeu, apavorado: a voz voltara. Jamais fora tão articulada como agora. E ela repetiu ao seu ouvido: carne.
Parou de comer, levantou-se, agitado, correu ao caixa, pagou e saiu depressa. E a voz, agora com um tom feminino bem definido, repetiu em seu ouvido: carne.
Perambulou pela ruas, atordoado, sem saber se prestava atenção ou se a ignorava. Errático, parava em frente a vitrines, entrava e saia de lojas, fingia ler os jornais das bancas, mas a voz não dava trégua.
Subitamente, percebeu que uma crescente excitação subia pelo seu corpo.
Era como se jovens, velhas e até crianças, ao passar ao seu lado, o convidassem a desfrutar prazeres que até então ele vivenciara muito pouco. Pernas, quadris e seios ganharam contornos ampliados, e ele quase babava, olhos arregalados, diante das mais diversas mulheres que encontrava. Naquela noite, tomou o caminho de conhecido bordel, onde prostitutas esquálidas saciaram sua sede de amor como se fossem deusas enviadas dos céus. E passou a noite assim, consumindo o corpo e o dinheiro nas mais sórdidas orgias que permitiam seus recursos.
Na calada da madrugada, no torpor dos excessos de todos os tipos, percebeu a ausência da voz. E ele, retomando consciência de seus feitos, juntou suas roupas embebidas de vinho e excrementos e fugiu dali, envergonhado.
Chegou em casa, jogou as roupas fora, e tomou um banho demorado, dormindo logo depois. Naquele dia, ele faltou ao trabalho sem ter tirado os pés da cama, onde remoeu sua loucura até o sono lhe dominar, já de madrugada.
Ao acordar, decidiu procurar um psiquiatra. Aprumou-se, ensaiou alguns palavras, receoso de parecer um louco comum, e saiu de casa rumo ao médico.
No meio do caminho, para seu desespero, ela ressurgiu. Agora repetia, a cada meio minuto, uma nova palavra: estômago.
Era uma voz masculina que o lembrava de pessoas conhecidas. O tom oscilava, incitando-o a comer freneticamente, em bares e botequins, até que ruídos de vômito passaram a acompanhá-la.
A voz passou a lhe causar náuseas. Entre lapsos de gula extrema e de asco violento, cambaleava pelas ruas, quando enfim chegou em casa. E a voz, inclemente, repetia: estômago.
Sentindo dores pelo corpo, tentou se concentrar em algo, procurando ignorar aquela maldição verbal. Quis entender o que acontecia, por que ouvia aquilo, por que uma voz se alojara seu ouvido. Revirou livros velhos em baús antigos, à procura de distração, mas não resistiu: tomou uma forte dose de remédio para dormir e deitou pesadamente em sua cama.
Ao acordar, com forte dor de cabeça, olhou para os lados, e tudo estava calmo. Esperou a manhã toda, e a voz não veio. Foi a tarde, foi a noite, e mais um dia se passou sem ouvir mais nada.
Na calada da madrugada, quando enfim descansaria em um sono reparador, um grito absurdo violentou seu ouvido: carniça!
Foi um barulho tão alto que ele se jogou no chão. Saia sangue pelo seu ouvido. E a voz gritou novamente: carniça!
Desesperado, entre gritos e gemidos, corria de um lado a outro em seu quarto, chocando-se contra a cama, o armário, a mesinha, quando tropeçou e caiu, com as mãos ensanguentadas sobre a cabeça, enquanto a voz berrava, insana: carniça! Carniça!! CARNIÇA!!!
De repente, um silêncio sepulcral. Por alguns segundos, nada. Sentiu, porém, que alguma coisa se mexia dentro de sua cabeça, como se a cauda de algum verme volteasse em seu ouvido. Aí aconteceu algo verdadeiramente terrível.
De seu ouvido, lentamente, saiu um monstro gigantesco. Lodo e lama escorriam pelo seu corpo repleto de feridas e cicatrizes. Seus olhos negros flamejaram por um instante, e da boca, cheia de pus e baba, um bafo espesso e alaranjado subiu ao ar. O monstro o encarou por alguns segundos, virou-se e saiu pela porta.
Sem entender, tremendo e horrorizado, ele desmaiou ali mesmo, imaginando que seu sofrimento, enfim, havia cessado.
Acordou com um raio de sol tocando seu rosto. Era como um beijo leve e carinhoso. A mão espalmada sentia cada diminuta reentrância do piso. Seu nariz distinguia matizes de odores que até então desconhecia.
Levantou-se, olhou para os lados, e percebeu que novas cores foram acrescentadas à sua visão. Luzes difratavam nos cantos das janelas, formando pequenos arco-íris que dançavam suavemente na saudação de uma nova vida.
Após se limpar, resolveu sair de casa. Lá fora, espantou-se com volutas de poeira fina e brilhante a cada esquina. Sons de folhas minúsculas caindo dos galhos, umas sobre as outras, banhavam seus ouvidos com timbres delicados e puros. Sua pele sentia sutis variações de temperatura. Seus pés, mesmo dentro dos sapatos, percebiam a umidade emanada das poças de águas ao seu redor.
Com a boca aberta, saboreou os vapores da sudação das plantas, e percebeu, na ponta da língua, a vibração das antenas da borboleta que cintilava, como um imenso cristal, sobre um magnífico lírio do jardim. Tudo eram sensações puras e delicadas a envolvê-lo naquele dia glorioso, sem vozes nem palavras.
Ao fim da tarde, contudo, após um longo passeio pelas ruas, sob o encantamento dos sentidos aguçados, parecia prestes a explodir. Não conversou com ninguém, não contou aos amigos o que lhe acontecera. Não ouviu um olá sequer, não entendeu os cumprimentos que os vizinhos lhe dispensaram. Tudo eram sons e timbres maravilhosamente confusos.
De volta em casa, abriu a geladeira para comer um sanduíche, mas não soube localizá-lo. Tudo se indistinguia em uma profusão de cores matizadas pelas diversas temperaturas do ar que lhe bafejava o rosto. Até o toque na porta lhe servia um cardápio de sensações que lhe convulsionavam o raciocínio.
Naquela noite não comeu, nem conseguiu tomar banho, afogado que estava em um caos de sensações emaranhadas. Não podia fechar os olhos, o que lhe obrigava a prestar atenção no tato suprassensível. Começou a desgostar do mundo, até que sem lembrou de uma coisa.
Ele se lembrou da voz. Vitimado por ela, sofrera horrores incontáveis. Lembrava-se de seu jugo, duro mas previsível, e de suas palavras, frias e cálidas, que submetiam suas emoções. Lembrava-se de ser seu escravo, e desejou sê-lo novamente.
Cambaleando, entrou no banheiro, trancou a porta, abriu a torneira da banheira e mergulhou na água morna que então mortificava sua pele. Ali ficou, olhando fixamente para o espelho do armário.
Alguns dias depois, foi encontrado morto, em decomposição, sobre uma enorme poça de sangue no chão do banheiro.
19/09/2014