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Antropologia Matemática

Vivendo sem números

Vamos pensar um pouco agora sobre o que é matemática através de uma tribo indígena do Brasil, composta de pouco mais de trezentos e cinquenta membros: os pirahãs.

Pirahãs

A história que vamos contar é bastante conhecida de linguistas de todo o mundo. Em 1977, o então missionário, hoje linguista de fama internacional, Daniel Everett, veio dos Estados Unidos ao Brasil para realizar a tarefa nada original de cristianizar alguns índios. Em suas andanças pela Amazônia, Everett se deparou com uma tribo indígena que vivia às margens do rio Maici. Eles eram conhecidos como pirahãs, um grupo bastante isolado do restante da população local. Everett resolveu se estabelecer, com toda a família, entre eles.

Com o tempo e a convivência, Everett foi percebendo uma série de características interessantes da tribo. Eles não possuíam mitos de criação e não se lembravam de ancestrais anteriores a seus avós. Sua língua não contava com palavras para cores e, o que é mais importante, sua gramática contrariava as teorias do linguista e ativista político norte-americano Noam Chomsky, talvez o intelectual mais influente de todo o mundo. Esse é o ponto que torna mundialmente famoso esse pequeno grupo de pessoas: estão no centro de um longo, antigo e furioso debate sobre as origens da linguagem humana.

Mas o que nos interessa aqui, no entanto, é uma outra descoberta fundamental de Everett: os pirahãs não têm palavras para números. Chegam, no máximo, a utilizar uma única palavra, ‘hói’, para indicar ‘pouco’ ou ‘pequeno’. Uma, duas ou três pedras na mão são ‘hói’. Se forem bem pequenas, um punhado de vinte delas também são ‘hói’. Entre eles, a noção de quantidade parece inexistente.

Pesquisadores e antropólogos de todas as áreas e de todo o mundo têm testado a paciência dos pirahãs com inúmeras pesquisas que comprovam, sem sombra de dúvida, que eles não só não contam, como também não se interessam em aprender a contar. Nem mesmo apenas um, dois, três, como os índios xetás, também da Amazônia. Os pirahãs são um povo que não possui aritmética, mínima que seja.

Enquanto isso, livros e mais livros de divulgação científica espalham a ideia de que a noção de contagem é universal, que a noção de número é algo genético. Outros pesquisadores afirmam ainda que a marca distintiva da humanidade é sua capacidade de fazer matemática. E nos perguntamos: o que, afinal, é matemática para esses autores?

Como em toda pesquisa antropológica, baseada na observação detalhada e na coleta extensa de dados, há quem discorde das teses de Everett. Até que a situação seja definitivamente esclarecida (se isso existe em antropologia e linguística), ficamos com a sugestão de que, afinal, a matemática não é uma característica comum à espécie humana, mas algo local, temporal, social, como tudo o mais na cultura.

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A indeterminação da palavra “matemática”

Ao contrário do que possa parecer, o significado da palavra “matemática” jamais foi estabelecido de maneira definitiva. Essa é uma observação importante, e corrobora a percepção de que o conjunto das coisas a que chamamos de matemática, seja o que isso for, não está bem definido.

Quando surgiu e a que se associou, durante sua longa história, a palavra “matemática”? Antes da resposta, uma advertência: conhecer a origem da palavra não é o mesmo que conhecer a origem da coisa – no caso, a matemática – assim como também não implica dizer que matemática é hoje aquilo que foi um dia associado ao seu nome. Pensar que existe um significado verdadeiro para alguma coisa, e que esse significado é aquele original, é um raciocínio falso conhecido como falácia etimológica. Palavras e seus significados mudam com o tempo, e “matemática” não escapa a esse processo.

É costume suspeitar que os nomes das mais diversas ciências tenham origem em palavras gregas. Com exceção de um ou outro, como química, um palavra de origem árabe, a suspeita em geral se confirma: física, história, geografia e muitas outras são palavras derivadas de raízes gregas. Não deve nos espantar que matemática também o seja.

Nossa análise começa com a raiz grega math, ligada a noções como aprender e conhecer. Dessa raiz, muitas palavras são derivadas. Por exemplo, o verbo mantháno, que significa eu aprendo, eu conheço. Quem aprende é um mathetés, um aprendiz. Aquilo que um mathetés aprende é um máthema, um objeto de aprendizagem, objeto de conhecimento, cujo plural é mathémata.

De máthema formamos o adjetivo mathematiké, que significa relativo ao conhecimento. A arte de conhecer, por exemplo, era dita mathematiké techné. Desse adjetivo mathematiké derivamos o substantivo plural mathematiká, que se traduz como as coisas cognoscíveis. Este é o significado original de matemática.

Repare como máthema se associa a um significado vago. Quando tradutores se deparam com essa palavra (ou seu plural mathémata) em alguns textos, as opções tradutórias costumam ser ciência, conhecimento ou mesmo matemática, segundo o contexto.

Desde os tempos de Pitágoras (c. 570 – c. 495 a.C.), no entanto, havia uma tendência a restringir o significado da palavra matemática a apenas alguns mathémata, como a aritmética, a geometria, a astronomia e a música, que em latim viriam a ser conhecidos conjuntamente como quadrivium. Platão (428 – 348 a.C.) tendia a considerar esses assuntos como os mais importantes mathémata. Afirmava, no entanto, em seu livro República, que o principal máthema era a Ideia do Bem (Platão, 1990: 505a). Aristóteles (384-322 a.C.), o principal e mais influente discípulo de Platão, definia a matemática como a ciência da quantidade, e daí notamos o início da constituição do núcleo conceitual que serviria posteriormente para selecionar e classificar, dentre os mais diversos mathémata, aqueles que seriam ditos matemáticos.

Apesar da influência de Platão e Aristóteles, a restrição do significado não ocorreu como podemos imaginar. Com o filósofo grego Sexto Empírico (c. 160 – c. 210 d.C.), que viveu cerca de seis séculos depois de Platão, notamos ainda o termo matemático usado para designar aqueles que hoje chamamos de professores. Em sua obra Contra os matemáticos, dividida em onze capítulos ou livros, Sexto Empírico envidou uma crítica aos professores de gramática, retórica, geometria, aritmética, astrologia, música, lógica, física e ética. Todos esses profissionais, dedicados ao estudo e ao ensino dessas disciplinas, eram considerados matemáticos: estudavam e ensinavam mathémata.

E o processo de significação continuou. Gramáticos, retóricos e éticos deixaram de ser chamados de matemáticos e a velha ênfase no quadrivium foi prevalecendo, tornando-o como que um critério para decidir o que é e o que não é matemática. O que se assemelhasse a algum dos mathémata do quadrivium, ou deles faziam uso, seria dito matemática. Será que esse critério se estabeleceria como definitivo?

O matemático britânico Keith Devlin, tentando entender o que é matemática hoje, sugere um interessante exercício de futurologia (Devlin, 2012): prever o que será a matemática daqui a 100 anos. Devlin argumenta que, historicamente, temos nos deparado com problemas e situações que continuamente exigem a criação novas categorias e de novas lógicas que reordenem a massa de nossos conhecimentos. Por exemplo, o trabalho dos linguistas consiste em localizar nas línguas padrões repetitivos e suficientemente estáveis que são formalizados em uma linguagem a que chamaríamos de matemática. O que pensar disso? Será que futuramente o significado de matemática voltará a ser tão amplo como o foi uma vez com Sexto Empírico?

Essas considerações nos indicam que a palavra matemática está sujeita, como toda palavra, a uma dinâmica de inflação e deflação de significado: às vezes bastante amplo, às vezes mais restrito. É como uma lenta respiração que leva séculos para se realizar.

É importante saber também que o significado da palavra matemática não é estabelecido por obra de um filósofo ou de um cientista particular, mas pela comunidade que a estuda e a utiliza. Significados não sou obras de indivíduos, mas de sociedades e de instituições que os selecionam em um processo semelhante ao da evolução biológica. A vida das palavras, assim com a dos seres vivos, está sempre indeterminada. Não existe nada nas palavras e nos conceitos que nos obrigue a agrupá-los desta ou daquela maneira. Quais consequências podemos tirar disso? O que faz com que um certo conjunto de mathémata receba um nome geral?